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Eu tenho um bigode, Yuri. |
Você deve estar achando que eu tenho algum tipo de fetiche com Sartre. Até agora foram 6 posts e 3 sobre o Frâncês vesguinho. Produtor do existencialismo e tudo mais. O cara é foda mesmo. No primeiro texto que aqui escrevi sobre o vesguinho e sua obra, disse que ele me ganhou por identificação. A princípio, dos personagens, mas à medida em que fui o conhecendo, identifiquei-me com o próprio também. Eu também sou vesgo. Meus olhos são corretamente alinhados, mas minha alma tem um tanto de vesguice.
E aí eu parti para ler o terceiro volume da trilogia de Sartre, já sabendo que ia me foder. E me fodi.
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Tão livre que bota os peitos pra fora. |
Liberdade, liberdade. Não tenho mais o que pensar sobre ela. Sartre parece que já pensou tudo, já escreveu tudo. Na base de metáforas, a filosofia dele está jogada nessa trilogia. E não é só Mathieu ou Brunet que está com a morte na alma. Todos nós. O fato de nós não podermos escolher se vamos nascer ou não, nos põe nesta condição: simplesmente temos que aceitar o fato da vida.
Alguns dirão que o suicídio é a forma escolher a outra opção à vida, mas não é. O suicídio é apenas a negação do que não pode ser negado. Assim como o pobre tem a capacidade de se endividar, o ser humano tem o poder de se matar. Mas ter o poder de se matar não implica ter o poder de morrer.
E essa prisão não é culpa do sistema capitalista, da cultura carnívora que herdamos ou mesmo da grandiosidade utópica do socialismo. É culpa da cegueira do universo, como diria Pondé (alvo de um texto futuro).
Gosto do Sartre porque ele não para a sua obra nela mesma. Enquanto ele fala sobre socialismo, parece estar falando sobre um turbilhão de coisas, que a uma primeira leitura parecem inexistentes. Gosto dele pela facilidade de falar de tudo num nada. Numa linha de existência, ele condena os leitores à liberdade, assim como nas suas teorias. Confesso que estou com um frisson em aberto para ler "A náusea" e "O muro".
Quanto à forma que "Com a morte na alma" possui, tenho uma nota para comentar. Não é nada de original ou revolucionário para mim a forma que o livro é narrado ou escrito. A divisão segue a mesma dos dois primeiros livros, um capítulo para cada dia, nem sempre sendo dias seguidos. A mudança de visões não é tão cinematográfica quanto o segundo volume. A marca que fica registrada deste volume é o fato como o fim dos personagens aparece de forma sutil e dúbia. Ele dá um fim sem dar. Ninguém necessariamente morre, casa, vai lutar na fronte da Inglaterra ou sequer consegue reunir os membros do partido comunista. Ele dá uma resposta para tudo de uma forma tão leve, tão inexistente, que faz parecer que não houveram as mortes.
E talvez, nessa forma indiferente de dar os finais devidos para cada personagem, resida uma pitada de existencialismo: não importa muito como as coisas vão acontecer, no final, tudo vai dar merda. Todo mundo vai morrer. E mesmo que importe como as coisas acontecem, Sartre nos mostra que os finais estão presos nas nossas próprias limitações, nos buracos do enredo. Não há muitas alternativas.
Talvez mais que os outros livros da série, "Com a morte na alma" deixou fixa em minha memória cenas épicas. Cenas que eu lembro quase todos os dias, pois elas se instalaram no meu cotidiano. Um livro que ao final parece dar a resposta para todos os problemas de nossa vida besta. Mathieu assassinando seus demônios empunhado com o rifle que achou embaixo dos escombros. Com o sorriso banhado em sangue. Os pobres escravos do inferno presos no trem em direção à Alemanha. Os miseráveis momentos de dúvida e descrença na vida. E no final, perceber que não importava o destino. A vida continuaria a existir. O sol nasceria e tudo seria parte do mesmo filme, rodando no mesmo cinema velho. É como voltar pra casa no ônibus lotado: não importa o destino final, a vida vai continuar a mesma. Seguindo o sentido eterno de "pra frente" na linha temporal.
Há os homens que chegam cansados em casa, depois de jornadas de trabalho medonhas e dias recheados de vozes, reclamações e estresses dos mais diversos. Há o homens que não se importam nem mesmo com o fato de não se importar. Há aqueles que se perdem na cama e se acham na rua. Há aqueles que procuram resposta para todas as almas desnorteadas e para todos os problemas da vida besta que não podem ser resolvidos nas páginas dos livros. Salvo este último estará se deparar-se com esta trilogia. Porque todos os caminhos, são o caminho inevitável da liberdade. Tão inevitável que ele deixa de existir por sua condição outorgada.
Leiam Sartre. Se quiserem.
Pra quem quer saber mais sobre Sartre:
Documentário elaborado pelo próprio Sartre, onde ele senta e fala sobre sua vida durante 3 horas. Ainda não o assisti completo, pois quero ler mais da obra dele para me abstrair melhor das referências biográficas que ele joga no meio dos seus textos.
Sartre Por Ele Mesmo / Sartre par lui même (1976)
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Documentário produzido pela BBC sobre Sartre, abrangendo sua biografia e mesclando ela com sua obra literária e filosófica. Conta com depoimentos de amigos pessoais de Sartre e de estudiosos de sua obra. Esse eu vi todo e indico muito. É bastante didático e simples. Não é tão pesado quanto o que foi citado acima. É bem fiel e muito bem produzido. Com direito até pequenas montagens cinematográficas de trechos das obras de Sartre.
BBC - Humano, Demasiado Humano - Jean-Paul Sartre - O Caminho Para a Liberdade
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Entrevista com o professor Franklin Leopoldo, da USP, onde ele fala sobre a trilogia "Os caminhos da liberdade". Conteúdo bem específico que vai dar um panorama mais acadêmico para algumas coisas que eu disse em meus textos sobre a trilogia. Para quem leu, é bastante reflexiva a entrevista, pois dá conceitos e estruturas filosóficas as quais Sartre utilizou para escrever a série.
Literatura Fundamental 15 - Trilogia Os caminhos da liberdade - Franklin Leopoldo e Silva
Até a próxima, amorecos.