A prova de que genialidade não anda de mãos dadas com a beleza. |
Imagine só que louco, caro lépido leitor, neste mundo gigante, cheio de ruas sem saída, de cadeiras vazias e discussões inúteis, ter alguém que quer fugir para um lugar comum ao que você imagina. Imagine que mais louco ainda se as ideias desta pessoas chegam até você. Parece ser a pessoa perfeita, a qual você se perderia na floresta para poder tentar entender melhor a si mesmo longe das instâncias da nossa sociedade de rédeas. A pessoas com a qual você escreveria a tese de construção de um novo modelo político baseado na necessidade e individualidade de cada um, vulgarmente conhecida como "a política do foda-se o mundo, eu quero é rir das piadas ruins".
Agora, caro serelepe leitor, imagine que esta pessoa é um personagem de um livro. O que fazer? A quem gritar? Que ônibus pegar para se encontrar com tal pessoa? Nenhum.
Toda a infinita existência do ser humano perfeito distribuída num número fixo e concreto páginas.
Para incrementar um pouco a metáfora, imagine que todos os personagens de um livro tivessem um tanto da descrição acima. E imagine mais além e realize que o livro é uma metáfora muito bem pensada para sua vida.
Falo aqui de "A idade da razão", de Jean-Paul Sartre.
O enredo é mínimo, talvez o que menos me interesse. E esse talvez seja o ponto mais forte do livro. É certo que tudo ao nosso redor é desinteressante, dependendo de qual ângulo se vê. Cada ato de nossa vida tem um tanto deste ideal. Escrever uma história em algumas folhas brancas e ilustrá-las com tintas velhas em um sótão de uma casinha na Alemanha enquanto sofre de febre e treme de frio parece ser uma coisa idiota, mas quando é Max, personagem de Marcus Zuzak - e porque não da vida -, este fato parece fantástico.
E o que é que faz o livro infantil de Max ser fantástico? Os motivos pelos quais ele o fez, o contexto sob o qual ele estava quando produziu e etc.
Entendem o que eu quero dizer? O que importa não é apenas o fato em si, mas as pessoas que o fazem, a forma como fazem, os motivos que as levaram a fazer e as consequências que o fato tomará dali em diante. Juntando o que acabei de dizer com a ideia que Júlio Rocha cita em seu livro "Técnicas para escrever ficção", em que ele diz que um personagem bom é o que faz a história, temos a receita mágica para "A idade da Razão": bons personagens, com boas razões, com belas personalidades, e assim como todos nós, em busca de liberdade.
Não, não se pode ser livre. O ser mais livre de todos, no fim das contas, é preso no seu ideal de liberdade. Mas o que é a liberdade? Ela seria tangível em alguma circunstância?
Talvez no inverno distante de plutão. Não, nem lá. Talvez no meu mundo invisível. Não.
A liberdade está presa em cada um, no que a gente faz e em como a gente faz. Nas causas, e consequências. Os personagens de "A idade da razão" mostram de forma concisa e difícil de se ler nas entrelinhas que na verdade a liberdade é uma farsa. O que vale é crer nela, talvez. Como um deus de uma mitologia distante.
Mathieu em sua vida supostamente liberta, passa a ser preso por todos que estão ao seu redor. Pelo amor ingênuo que sente por Ivitch, pela idolatria que inspira em Bóris, pela raiva infantil que faz nascer em Lola e pela prisão que Marcelle construíu dentro de seu quarto rosa. E é assim com todo mundo: somos presos porque quem está a nossa volta, por quem e o quê a gente ama. O mais próximo de liberdade que a gente consegue chegar seria longe de tudo que conhecemos. Perto do vazio. Mas o presente sempre está cheio demais, sempre penoso e um tanto doloroso. O que nos faz viver é uma esperança vaga do futuro. E "a vida se faz de futuro tanto quanto os corpos se fazem de vácuo" (A idade da razão, Sartre)
Ivitch e sua inconsequência, sua infantilidade que beira a perfeição. Adimito que me apaixonei um tanto pelas pequenas esquizofrenias que acometiam a minha pequenina Ivitch. Apesar de não saber a pronuncia do seu nome, ela me parecia ter o aroma biológico de uma flor semiextinta. Uma espécie de feromônio cerebral. A loucura dela parece um tanto com a minha. A insensatez dela, a infelicidade travestida e a calma altamente elétrica dela parecem coexistir entre o meu e o corpo imaginário dela. Ivitch, por mais que sentisse calor, parecia sempre agasalhada, encolhida e procurando calor. Mas, querida Ivitch, o calor não vem nessa vida. É mesmo tudo frio e traiçoeiro e não adianta se acolher. Queria dizer para Ivitch tudo o que diria a mim mesmo.
Boris e sua idolatria por Mathieu. Porém, por trás do amor cego, Boris não enxerga o verdadeiro Mathieu intrigado, confuso e com medo de seus resultados falhos. É um tanto invejável como Boris vê apenas o lado bom de Mathieu, apesar de moralmente dúbio.
Lola e seu amor, Marcelle e sua prisão tão libertária. E todos os outros personagens, independente de qualquer coisa, são um retrato da vida cotidiana e de todas as faces que a liberdade cria em nossa sociedade. Mais uma vez, falo sobre a atemporalidade da obra. Trinta anos podem se passar, mas a obra continuará viva e sendo um dedo na ferida de todos os filósofos da vida besta.