domingo, 25 de maio de 2014

Domingos


Tia "bibi" olhava desolada o enorme buraco em seu quintal, consequência de um vazamento. Lembrava atordoada da noite passada, na qual seu filho Beto quase foi devorado por aquele cretino buraco que mais lembrava a boca de um tufão. Andando sorrateiramente os quatro cantos da casa, alarmou-se:

- Beto! Ligue para todos os seus tios, vamos fazer um mutirão. Família serve pra isso mesmo. 

- Mas, mãe. Hoje é ...

- Sem mais, Beto. Diz que terá feijoada!

Beto sem alternativa acabou obedecendo simultaneamente.

- Alô, tio Pelé?

- Ôh, Betão! Cadê a bênção, menino?!

....

- Alô, tio Pedro?

...

- Isso mesmo. Feijoada.


Casa cheia. Tia bibi se desdobrava em duas para relatar a lástima da terrível "cratera" em seu quintal e para dar conta de encher a barriga daquela gente que mais parecia lagartas famintas seguindo o delicioso cheiro da sua feijoada.


- Ôh, bibi! Trás aquela cervejinha pra acompanhar.

- Mãeee!!!  O léo derramou o feijão todo no sofá.



 Tia bibi, coitada. Corria  de um lado para outro.

Exclamava:

- Calma, minha gente!

  
Intimidava:

- Desce daí, peste. Você vai cair.


 Acarinhava:

- Não acabou, não. Já coloquei mais água no feijão!




Fim do dia.


E lá estava tia bibi, olhando desolada (...)

sexta-feira, 23 de maio de 2014

O pícaro russo, de Gary Shteyngart



à Isaac 
Garrincha tinha pernas tortas. Ele é um dos meus maiores idolos. Eu não gosto de futebol.
Perceba nas três afirmações acima destruições de personalidade, sentimento de aceitação e  uma história de superação, distribuídas de forma aleatória pelo universo. Vou responder a uma  pergunta que às vezes eu mesmo me faço quanto às três afirmações anteriores.  

Porque João é fã de Garrincha, se este era um jogador de futebol com pernas tortas e  nem de futebol João gosta?  
Mais uma pergunta: João gosta de pernas tortas?

Garrincha tinha tudo para dar errado, mas deu certo. Assim como Cazuza e assim como eu. Cazuza tinha problemas vocais. Até mesmo Sartre, com sua vesgueice, sua feiúra e todos os questionamentos que ele crucificava em seu próprio eu, no fim das contas, deu certo de alguma forma. Eu não me preocupo com a forma como estes exemplos que estou citando deram certo, apenas com o fato deles  terem dado certo sob uma perspectiva adorável para a nossa sociedade. Mas e eu? Onde eu entro nisso?  Qual o meu erro e minha carta na manga? Meu defeito e minha absurda genialidade de fazer dela uma qualidade.
Eu existo. E sabe o que há de sucesso nisso? Há todo o sucesso do universo, mas ao mesmo tempo não há nenhum.  Só imagino aqui dentro, no turbilhão defeituoso que é meu pensamento que há alguma coisa de errado no fato de  ter ganhado a gloriosa corrida dos espermatozóides. É a cegueira do universo. É, eu ganhei. Mas ao sair do útero, devo ter me perguntado inconscientemente: e agora?  Agora eu tô aqui.  
Eu não escolhi, mas sou brasileiro, cidadão desse mundo. Cidadão do mundo louco de meu deus. Tenho carteira de  identidade, cpf, cartão de crédito, matrícula na faculdade, email, boleto bancário com meu nome... Eu tenho até  um nome. Uma etnia. Mas tudo isso não passa de uma confederação de erros.  Como diria Hemingway: "Eu entrei errado".

O Pícaro Russo vem pra isso. O pícaro russo é a vitória do erro. É o Garrincha, o Caju, o Neto. O homem que  responde com a vida ao questionamento: viver pouco como um rei ou muito como um zé?  
O lance é viver.
E se eu estivesse falando a última frase, ela não teria uma exclamação verbal, assim como  não tem uma textual. Não teria dito-a com alegria ou efusividade positiva. É apenas uma sequência de letras derrotadas por um ponto final. E não seria a mesma coisa se fosse uma vírgula, interrogação. Pelo menos não para mim. Cada um coloca a pontuação que quiser no final dela. Mas pra mim, ela é um ponto. E talvez  nunca deixe de ser.  

E para variar, eu me perdi novamente no assunto. E eu não vou editar isso para que minha falha seja camuflada.  Voltando ao assunto, eu sou brasileiro. Sou, mas não escolhi. Não estou dizendo que se eu pudesse escolher,  eu não teria escolhido o Brasil como nãção. Acho que estou até um tanto satisfeito com tal. Mas a questão é  apenas que eu não escolhi. Assim como eu também não escolhi ser parte de tudo isso. Não acho triste como outros  estudiosos do humanismo acham, só acho que pouca gente consegue ver isso. Sabe, o lance não é com o Brasil.  
Mas a gente não escolheu ter dois olhos ou cabelos pretos.  
Assim como Vladmir Girshkin não escolheu ser um judeu russo erradicado nos EUA.  

Voltando um pouco aos erros que deram certo, tenho um dado interessante sobre Mané Garrincha: "Ele e Pelé, juntos, jamais perderam um jogo pela Seleção Brasileira, 35 vitórias e cinco empates em 40 jogos." E um dado também bastante interessante sobre Caju: "Em apenas nove anos de carreira, Cazuza deixou 126 canções gravadas, 78 inéditas e 34 para outros intérpretes."
Sartre: "Jean-Paul Charles Aymard Sartre morreu em Paris, França, no dia 15 de abril de 1980".
Sobre Vladmir Girshkin eu tenho um livro com 450 páginas de pura excelência fantástica. 
E sobre mim mesmo, o que tenho? Tenho frustrações e canções num mesmo barco paradoxal. E um desejo pela simplificação do caos. 

Eu tenho um desejo estranho que me faz levantar todas as manhã: o de simplificar o caos indivisível que cerca a minha invisibilidade. Com licença, vou limpar meu óculos. Ela já me deu boa noite. 

"Eu sou um erro posto aqui e tenho consciência do meu erro. E eu não cometo mais erros em cima do erro que eu sou" PETRY, Arthur

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Cecília

Quando tinha cinco anos de idade, ainda na aurorinha da vida, fiz uma viagem que já estava até habituado a fazer: Fui para a casa de minha avó, no interior do RN. Estou falando de um lugar onde o sol sempre brilha. Um lugar onde os selvagens vagam e a grama esverdeada é onde eles fazem sua morada. Um lugar onde é verão o ano inteiro e as pessoas podem levar suas vidas simples tranquilamente. Mas daquela vez que apareci por lá, tinha algo novo. Um circo que irrompia sorrisos acabara de chegar àquela já tão lépida comunidade.

 No meio daquelas brincadeiras confusas que eu fazia nas proximidades do circo – brincadeiras que nem mesmo as crianças entendem o que estão fazendo -, conheci uma moreninha linda, com a mesma idade que eu, dos olhos negríssimos que pareciam duas luas gêmeas no espaço da inocência infantil; tinha os cabelos bem lisos e uma cicatriz circular no couro cabeludo que formava uma região infértil onde não crescia cabelo.  Seu nome era Cecília, era do circo, fazia um espetáculo onde ela descia dulcíssima e delicadamente de um tecido pendurado no teto da estrutura metálica que sustentava o circo.

Durante os poucos dias que passei por lá, corremos soltos e livres pelas ruas de terra batida e, exaustos, caíamos no chão e cavávamos  e cavávamos e cavávamos mais ainda. Aquilo era estranho demais pra mim, já que fora uma criança sedentária que só sabia jogar vídeo-game e era proibida – por excessivos cuidados maternos – de conseguir machucados e arranhões.  A gente queria cavar até o fim do mundo. E eu sempre com medo daquele início de mundo que nos cercava. Tinha medo das galinhas, das minhocas, mas perdi meu medo de adquirir hematomas ou de me sujar por inteiro. Nunca passou-me pelos sentidos ter medo de me distanciar dela, nós estávamos efusivos demais com a ideia de atravessar o mundo pela senda que nós criaríamos. Fomos melhores amigos por alguns dias e ela passou até a frequentar a casa de minha avó. Dona Maria, aparentemente, gostava mais dela do que de qualquer um de seus netos. Justificável. Tínhamos um pássaro livre na nossa frente, alguém que desde cedo não era habituada a gaiolas ou prisões. “Nasci no Equador” – disse Cecília. Eu nem sabia que raios era Equador, mas pude perceber que havia algo de surpreendente nesse fato pela expressão que se formou na cara dos adultos quando ela falou aquilo. Fui-me embora alguns dias antes de o circo ir-se também.

Sempre vejo meu passado através de um filtro alaranjado de vislumbre. Não consigo ter reminiscências sem esse viés poético na lembrança. Lembrei-me dela porque estava lendo On the Road – Pé na Estrada (Jack Kerouac), livro que mostra o nascimento de uma sociedade beat, contracultura, viajante, drogada e alucinada. Personagens incrivelmente simples e que significam tudo mesmo aparentando não serem nada.  Caras que viajavam dois, três, quatro mil quilômetros pra curtir um bebop num bar escuro do oeste americano; queriam apenas descobrir quais eram suas estradas. Sempre com muitas mulheres, eram fiéis apenas à Maria Joana. Verdadeiros Anjos do Mundo.

 Às vezes fico imaginando o que Cecília tem feito, o que aqueles olhinhos andam fitando, onde aqueles pés têm pisado, como está aquela tez angelical. A imagino como se fosse uma espécie de Neal Cassady angélica e pura (?).

Hoje eu estou fazendo 18 anos de idade. Há 13 anos não vejo Cecília e, provavelmente, nunca mais iremos nos ver. Nossas histórias se cruzaram por mera fotuidade e capricho dos mecanismos  universais; talvez ela nem lembre que eu existo.  Só desejo que esse anjinho do mundo esteja alçando voos mais altos que os meus.  

segunda-feira, 12 de maio de 2014

O azarão, de Marcus Zuzak

   Porra.
   Olhar pra tua foto e pensar "hoje não" é o melhor sentimento do mundo. E pensar em você como uma estranha, como parte de um passado que eu agora consigo dizer sorrindo que já passou.
Baby, ontem a noite foi louca. E quem disse que o álcool não ajuda, estava errado. Acordar pela manhã com um gosto amargo posto pela mistura de cerveja, cana, lasanha e outras coisas as quais minha memória não foi agraciada, olhar a foto tua do jantar de dia das mães e pensar que todo o tempo que eu perdi com você foi realmente perdido. Chega a ser engraçada a minha idiotice.
   Pra quantos caras você já deu depois de mim? Você me ensinou. Meu livro favorito foi um presente seu. Meu escritor favorito foi você quem me apresentou. Mas agora, às 7 da manhã, depois de uma noite terrivelmente feliz, eu entendo que não há nada além de conversas, sorrisos, lágrimas e algumas batatas fritas. Mas sabe a notícia ruim, baby? Batata frita eu posso comer com qualquer um.
   Todo mundo tem um sorriso pra me oferecer. A noite de ontem foi a prova disso. Mesmo que os sorrisos estivessem sendo alterados, ou mesmo gerados pelo álcool, eu tive sorrisos. E as pessoas estavam felizes por eu estar feliz. Todo mundo tem mágoas pra compartilhar. Baby, o mundo é tão grande, porque desperdiçá-lo pensando em vossa senhoria?
   Tenho a minha falta de talento, a falta de coordenação motora, meus amigos também derrotados, a falta de um lugar seguro para não me machucar nesse mundo louco de meu deus, o fato de eu ser uma peça que não tem encaixe no quebra cabeças da vida, meus erros propositais para causar confusão, o amor adverso da minha família semidesestruturada, a angústia dos exercícios de álgebra linear e as cogitações de futuros incertos. Tenho tudo isso para sofrer e me fazer mal. Porque eu sofreria por você mesmo?
   E Markus Zusak, o que tem com isso?
   Ele faz os personagens dele serem grandiosos, mas grandiosos de uma forma real. Não há grandiosos monstros ou super heróis. Pessoas normais que não tem nada de extraordinário, mas que entenderam a lógica dos erros da vida e perceberam que ser um erro de  vez em quando é um acerto.
   Zusak é o cara que dilacera um boi com uma colher de chá de farinha de trigo (?).
   Ele vai no âmago da derrota e mostra que há uma vitória lá.
   Ele mostrou que Ed podia mudar o mundo sendo um motorista de taxi, mostrou que Liesel pode entender que o valor da vida é o valor das histórias que temos pra contar, mostrou a Rube qual é a luta que realmente importa. E mostrará a Clay que a ponte nunca ruirá se ele não quiser.
   "O azarão" é um livro que não tem um clímax de tirar o fôlego, não tem uma cena de ação fortíssima nem tem lances de investigação por trás de um crime. É uma obra subestimada por não possuir nada demais, pois o ser humano tem essa tendência a buscar por coisas extraordinárias e cheias de complexidade. E mesmo que haja quem diga que a beleza da vida está nas pequenas coisas, ainda preferem ler "O símbolo perdido" ou "O Alquimista" do que arriscar suas grandiosidades intelectuais em uma perda de tempo literária que seria "O azarão".
   Em um vídeo que perambula por esse universo louco que se chama internet, encontramos Gustavo Magnani, um escritor e estudioso da área falando uma coisa interessante. O vídeo em si fala sobre a grandiosa polêmica perdida por entre os corredores das faculdades e universidades de humanas, berço dos comunistas burgueses, mas o que interessa para meu texto é apenas um trecho em que Gustavo fala que no fim das contas, o que importa mesmo são os sentimentos que as obras despertam em cada um de nós, o que elas nos fazem pensar e fazer. Para ele, não importa muito o que a crítica ou a academia no geral tem a dizer. E eu concordo com ele. Mas o ser humano tem uma capacidade de querer ser idiota que é impossível de ser igualada. E "O azarão" fala também disso.
   O fato de não termos nada de mirabolante na história nos faz pensar sobre o quão erradas estão as pessoas certas. O quão certas estão as pessoas erradas, o quão vazias estão as totalidades e todas as outras variações que essa prerrogativa pode levar.
   "O azarão" conta a história de um rapaz comum, que ama e que pensa no futuro. Um rapaz que sofre por amores não correspondido. Mas que vence a luta da vida com suas próprias técnicas. É o que eu faço, basicamente.

Gênio.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

resignação

Ao som de “Eu não tenho um barco, disse a árvore”, de Cícero.

As garrafas de champagne seguem estourando à meia noite do primeiro dia do ano, os motoristas de ônibus continuam fazendo suas greves e minha rinite alérgica me ataca nos meses de chuva.
Eu acho que esqueci o cheiro dela.
Os maços de dinheiro nos bolsos do traficante, as cartas na caixa de correspondência e as flores nos túmulos dos escritores mortos.
Eu acho que esqueci o cheiro dela.
É difícil tentar não parecer clichê, repetitivo e doloso. É difícil não parecer estar numa novela das oito ou num filme de comédia romântica. Queria acreditar que tu vai abrir a porta do meu quarto às 3 e cinquenta da manhã e vai me mostrar que teu cheiro está guardado numa gaveta empoeirada da minha memória.
Eu ainda tô aqui, escrevendo essas coisas que você dizia gostar. E dizia metade pra me agradar e a outra metade porque se achava um tanto no meio dessas idiotices que me saem de forma corrosiva nessas madrugadas em que eu aprecio a apatia do teto do meu quarto. Acredite ou não, minha mente ainda é a mesma. Ainda continuo são, naquela loucura meio revolucionária que você dizia amar. Mas dizia, em parte, pra me agradar e em parte porque gostava mesmo desse meu desejo indevido de dizer com todas as letras que “não fazer nada é uma arte”.
Se tu ligasse agora, não apareceria mais teu nome abaixo de uma foto meiga. É, eu tentei te esquecer há algum tempo, mas não deu certo. “Como tudo na tua vida”, você diria. É, baby, nada dá certo comigo. Sou cheio de erros, não cumpro minhas promessas e nem completo as coisas que começo, mas diz pra tua cabeça que tu não gostava do pedaço-de-ser-humano-inerte-sem-qualidades que eu sempre fui. Diz pra tua cabeça, diz. Tenta mentir pra ti mesma. hahaha
É um fato: se você me ligasse agora não apareceria teu nome, porque na minha agenda eu dou preferência para o disk-entrega-d’água ao invés de desilusões amorosas. Mas tá aqui outro fato, baby: eu sei a porra do seu número. Cada um deles. Aquele zero e aquele 17. Sei sim. E se eu tivesse coragem eu ligava agora e mandava tu tomar no cu. Mentira, eu ligava só pra ouvir você dizendo alô e depois voltar a dormir sem entender porra nenhuma.
Eu acho que esqueci teu cheiro.
É, eu sonhei contigo. Eu ganhei aquela bolsa que eu queria, tive aquelas brigas com minha família, resisti àquela ida no psicólogo tão adiada. Peguei uns livros emprestados e fui no cinema sozinho. Desisti daquele curso que tu odiava e completei o ensino médio antes do esperado.
Mas quando eu vou deitar na cama todos os dias, eu olho pro meu teto e me pergunto “e daí, João?”.
E daí que todos os meus amigos me chamam do apelido que tu colocou, e daí que foi muita coincidência eu estar ouvindo tua música preferida da primeira vez que a gente se falou, e daí que o menino-prodígio-das-notas-altas-em-algoritimo sente tua falta nas noites de insônia. Sente falta do riso bobo da tua irmã mais nova, sente falta das conversas sem nexo com a tua irmã mais velha e sente falta de fazer média com teus pais.
Sabe, eu nunca fui bom aluno na escola nem fui exemplo de nada bom. Eu sei que seus pais perguntariam a qualquer imbecil que fosse pseudo-namorar você sobre o futuro e sobre as notas da escola. Mas eu, baby, eu não tinha perspectivas, sonhos ou nada. E seus pais sabiam, tava escrito numa plaquinha em cima da minha testa. E mesmo assim, eles fingiram gostar de mim, porque de alguma forma eles entenderam que eu te salvei. E eu te salvei.
Mas e aí?
Tá aí.
Sabe o que é pior? É que esse texto pode ser entregue pra muita gente com algumas poucas alterações.
Eu não sei escrever essas coisas com personagens.
:)