quinta-feira, 22 de maio de 2014

Cecília

Quando tinha cinco anos de idade, ainda na aurorinha da vida, fiz uma viagem que já estava até habituado a fazer: Fui para a casa de minha avó, no interior do RN. Estou falando de um lugar onde o sol sempre brilha. Um lugar onde os selvagens vagam e a grama esverdeada é onde eles fazem sua morada. Um lugar onde é verão o ano inteiro e as pessoas podem levar suas vidas simples tranquilamente. Mas daquela vez que apareci por lá, tinha algo novo. Um circo que irrompia sorrisos acabara de chegar àquela já tão lépida comunidade.

 No meio daquelas brincadeiras confusas que eu fazia nas proximidades do circo – brincadeiras que nem mesmo as crianças entendem o que estão fazendo -, conheci uma moreninha linda, com a mesma idade que eu, dos olhos negríssimos que pareciam duas luas gêmeas no espaço da inocência infantil; tinha os cabelos bem lisos e uma cicatriz circular no couro cabeludo que formava uma região infértil onde não crescia cabelo.  Seu nome era Cecília, era do circo, fazia um espetáculo onde ela descia dulcíssima e delicadamente de um tecido pendurado no teto da estrutura metálica que sustentava o circo.

Durante os poucos dias que passei por lá, corremos soltos e livres pelas ruas de terra batida e, exaustos, caíamos no chão e cavávamos  e cavávamos e cavávamos mais ainda. Aquilo era estranho demais pra mim, já que fora uma criança sedentária que só sabia jogar vídeo-game e era proibida – por excessivos cuidados maternos – de conseguir machucados e arranhões.  A gente queria cavar até o fim do mundo. E eu sempre com medo daquele início de mundo que nos cercava. Tinha medo das galinhas, das minhocas, mas perdi meu medo de adquirir hematomas ou de me sujar por inteiro. Nunca passou-me pelos sentidos ter medo de me distanciar dela, nós estávamos efusivos demais com a ideia de atravessar o mundo pela senda que nós criaríamos. Fomos melhores amigos por alguns dias e ela passou até a frequentar a casa de minha avó. Dona Maria, aparentemente, gostava mais dela do que de qualquer um de seus netos. Justificável. Tínhamos um pássaro livre na nossa frente, alguém que desde cedo não era habituada a gaiolas ou prisões. “Nasci no Equador” – disse Cecília. Eu nem sabia que raios era Equador, mas pude perceber que havia algo de surpreendente nesse fato pela expressão que se formou na cara dos adultos quando ela falou aquilo. Fui-me embora alguns dias antes de o circo ir-se também.

Sempre vejo meu passado através de um filtro alaranjado de vislumbre. Não consigo ter reminiscências sem esse viés poético na lembrança. Lembrei-me dela porque estava lendo On the Road – Pé na Estrada (Jack Kerouac), livro que mostra o nascimento de uma sociedade beat, contracultura, viajante, drogada e alucinada. Personagens incrivelmente simples e que significam tudo mesmo aparentando não serem nada.  Caras que viajavam dois, três, quatro mil quilômetros pra curtir um bebop num bar escuro do oeste americano; queriam apenas descobrir quais eram suas estradas. Sempre com muitas mulheres, eram fiéis apenas à Maria Joana. Verdadeiros Anjos do Mundo.

 Às vezes fico imaginando o que Cecília tem feito, o que aqueles olhinhos andam fitando, onde aqueles pés têm pisado, como está aquela tez angelical. A imagino como se fosse uma espécie de Neal Cassady angélica e pura (?).

Hoje eu estou fazendo 18 anos de idade. Há 13 anos não vejo Cecília e, provavelmente, nunca mais iremos nos ver. Nossas histórias se cruzaram por mera fotuidade e capricho dos mecanismos  universais; talvez ela nem lembre que eu existo.  Só desejo que esse anjinho do mundo esteja alçando voos mais altos que os meus.  

4 comentários:

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  2. Cecília, talvez, sendo ela boa passarinha, possa também bater asas nessas lembranças. Parabéns, Yuri! (Já pode ser preso) HUAHSUAHUS

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  3. "E eu sempre com medo daquele início de mundo que nos cercava." <3

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